FERNANDA ETELVINO CRUZ RAMOS

Conceição de Jacareí

Nasci em 1964 no Rio de Janeiro. Minha mãe era doméstica e um dia resolveu “se libertar” e me levou de volta para Mangaratiba, quando eu tinha 17 anos. Só em Mangaratiba conheci o pão bengala. É o pão que me remete àquela época, porque era um pão desse para todas as crianças. Lembro muito da minha vó, que morava no mesmo quintal que eu vivo hoje, mas em outra casa. Sinto muita saudade. Em Mangaratiba as brincadeiras eram três marias, andar na lata. E a brincadeira tinha horário pra terminar: minha vó aparecia e falava “guarda por causa da assombração” E tinha assombração! No caminho pra cá tem o cemitério dos escravos. A cachoeira, na entrada do terreno, não tinha ponte, e meus primos passavam rapidinho e eu tinha dificuldades. Eles implicavam dizendo que eu era muito fresca. Lembro da Folia de Reis, dormir em esteiras no chão, sem cobertas, da “Cachula”, uma música da Folia de Conceição, e Calango, uma espécie de repente. Estamos tentando resgatar a Folia de Reis, mas a gente se pergunta se vamos conseguir manter até os descendentes. A família que recebe a folia oferece algo para os foliões comerem. Eles ficam pelo menos uma hora em cada casa. E é sempre a mesma sequência. Lembro do frio, de dormir de calça jeans. Como não tinham colchas, a vó fazia adaptações. Não tinha banheiro: era um penico da vó embaixo da cama, e quando um tinha vontade de fazer xixi, todos ficavam com vontade também. De repente, ouvia de longe a sanfona. Então elas se arrumavam para receber os foliões porque entre eles estavam os namoradinhos que as mães não sabiam, porque não deixavam. Começavam a tocar do lado de fora, e depois entravam e rolava forró até de manhã, com cachaça, biroró, uma rosca tipo nozinho, angu e café. Também recordo do carnaval. A gente ia de litorina da Central até a vila, de lá pegava a barca até Jacareí, vomitando o caminho inteiro. A barca parava no meio do mar e a uma canoa ia buscar os passageiros. O avô e alguns amigos esperavam na ponte, então eles todos subiam a pé, do Porto Real até a casa dos avós, numa caminhada de pelo menos uma hora. Nos menosprezavam dizendo: “você foi criada com peixe com banana, é pobre”. Até casar não aprendi a fazer nada. Minha mãe teve que avisar o meu primeiro marido: “ela não sabe fritar um ovo, mas não bata nela, não maltrate ela”. O peixe com banana da minha avó era o peixe galo, transparente, “aquela água pálida”. Lembro que ela esquentava água no fogão de lenha, pegava a banana pálida, amassava bastante e misturava com farinha. Servia com aquele peixe magro, que era só espinho. Minha avó se vestia com calça, vestido e um lenço na cabeça, ia até a porta e ficava comendo com a mão, fazendo bolinhos, de cócoras – com os cachorros todos em volta olhando. Então ela ia no galinheiro, enfiava o dedo no cu da galinha e saía um ovo, que ela preparava com feijão com arroz porque eu não comia peixe com banana. Ela também fazia matruco, o beiço do boi. Não deixava ninguém cheirar a comida. Ela me forçou, não quis comer e minha vó acabou fritando uma mortadela pra mim. Enquanto a vó fazia peixe frito pra mim, pros outros netos era peixe cozido mesmo. Meus primos me chamavam de metida porque fui criada no Rio, em apartamento. Na minha época não tinha chuveiro, era só banho de bacia. Tinha uma panelinha preta pra lavar as mãos depois que as crianças comiam. Os primeiros iam lavando e o último “sujava” a mão com a água que tinha sobrado. Antigamente não tinha nenhum entretenimento em Conceição. A vida social era a festa da padroeira em 8 de dezembro, as Folias de Reis do Seu Filinho até o Natal, daí o Natal, e depois mais Reis. Aí vinha o carnaval em fevereiro. Antes da Semana Santa, tinha a “Serra Velha”: as pessoas se colocavam do lado de fora da casa, perto de uma janela, e iam serrando uma madeira ou uma garrafa e, em versos, perguntando: “com que é que vai ficar a Fernanda”. Tinham as festas juninas e na Semana Santa tinha baile. Na escola, eu jogava muito queimado e de roubar bandeira. A gente também fazia “hifi”, sempre na casa de alguém. Todos se conheciam, eram poucas famílias. Lembro de frequentar quando criança um lugar chamado “Gaiolinha”, onde hoje é a farmácia e os Correios. Era um parquinho com balanços e gangorras, onde vendia maçã do amor, pipoca e churros. Conceição era considerada aldeia. Quando comecei a dar aulas na escola, vinha escrito nos documentos “Escola Estadual Dr. Santos Bastos da Aldeia de Conceição do Jacareí”. Aldeia porque ainda consideravam a questão dos indígenas: Conceição, relacionada à questão religiosa da Santa, que porque estava chovendo não pode ser levantada do local, e Jacareí, do tupi, lugar onde tem muitos jacarés. A versão da Santa também é contada em Angra dos Reis. A formação de Conceição então é indígena, quilombola e portuguesa. Jacareí é de Itacurubitiba até aqui. O pedaço onde moramos fica bem na divisa com Angra. Muita gente gostaria que voltasse a ser território de Angra, que na emancipação a área foi dividida. A luz chegou junto com a Rio-Santos, em 1975, mas só na praia. Me casei com 21 anos e a minha casa não tinha água nem luz. Eu descia com balde e lavava roupa na cachoeira. A luz chegou mesmo pras pessoas ricas de Jacareí, na praia e nas casas. Na nossa rua, a luz só chegou no meio dos anos 1990. Sempre houve uma rivalidade “da Rio-Santos pra lá eram os ricos, da Rio-Santos pra cá eram os pobres”. Conceição tinha dois blocos de carnaval: Fenianos, vermelho e branco, e Democratas, azul e branco. Inicialmente desfilavam em Conceição, só anos mais tarde os Fenianos passaram a ir para Mangaratiba desfilar contra os blocos de lá, por volta de 1985. Pelo Fenianos ser um bloco muito antigo, os moradores de Conceição achavam que o pessoal do Farofa era metido por encarar eles. E a gente ia pra lá e ganhava todas! Minha avó fumava cachimbo. Também mascava fumo e cuspia num penico, à distância. Teve uma época em que, nos finais de semana, dava quase 500 ônibus, a maioria vindos da Baixada. Os excursionistas roubavam frutas, objetos e até as plantas das casas. Não tinha DPO. Atualmente, em Conceição tem 6 farmácias, cinco padarias, quatro supermercados, boca de fumo e assassinatos não desvendados. Não tem delegacia, apenas DPO com quatro policiais. Eu sempre viajo no carnaval, porque acaba a água, a luz, e bate em torno de 10 mil pessoas visitando. Tem se construído muitas quitinetes e, em cada uma delas, chegam umas 20 pessoas. A rua atrás da nossa está cheia de “gatos” na fiação e o carnaval foi substituído pelos bailes funk. Dos edifícios antigos de Conceição sobraram só a igreja, que é tombada, o cruzeiro, que foi alterado, a cruz é original mas o entorno não, a Salga, a peixaria, e só. O resto foi pro chão. O cemitério está abandonado. O casarão em frente ao cemitério acabou. A casa de 7 portas, que foi a venda do Seu João, não tem mais, hoje são só 2 portas. E a escola também vai pro chão. Se pudesse escolher, eu voltaria para a década de 80, que era muito namoradeira e me divertia. Lamento que a minha neta provavelmente não vai cantar a Folia de Reis, que os filhos da geração dela não se empolgaram com a festa para querer manter. E se as novas gerações quiserem sambar vão ter que ir pra Marquês de Sapucaí porque ali não tem mais carnaval. Sinto muito que o patrimônio de Conceição está sumindo, como a escola que foi demolida e virou estacionamento. Que a nova geração vai conhecer o local como uma comunidade, como aparece no jornal RJ2, como o “Complexo de Conceição do Jacareí” onde prenderam 20 pessoas, 17 dos quais foram meus alunos. Ela se questiona: “Tudo o que falei não serviu de nada?”. Hoje eu não vivo mais como antes, não subo mais a pé sozinha, pego mototáxi porque ali na boca da cachoeira que a gente brincava hoje tem uma boca de fumo. E tudo continua se deteriorando. O pouco que sobrou de mata é dali para o alto, o resto está sendo derrubado e as casas estão tomando conta. São as próprias famílias que vão loteando, na mão da nova geração que não dá valor ao lugar, para eles é mais importante o dinheiro. Eu prefiro o lugar.

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