Nasci em 1962 na Fazenda do Armando (Santa Isabel), de parteira, em casa. Fui pesada em 'balança de peixeiro'. Passei toda a infância entre Mangaratiba e Conceição, onde morava minha avó. Ia para a casa da minha avó em todas as férias: chupava cana, cuidava da casa e dela, parava tudo pra ouvir as novelas de rádio e depois de TV com a minha vó. Na Quaresma, tampava os santos e fazia jejum. Na Sexta-feira da Paixão, minha avó não deixava ninguém sambar. Estudei no Coronel e no Barros Neto, depois fiz faculdade em Campo Grande. Pegava a lancha com a minha mãe em Mangaratiba para Conceição e meus quatro irmãos, todos vomitando pelo caminho. A lancha era abafada e parecia que a gente sentia o motor dentro do estômago, com o cheiro de gasolina. Subia a pé até a casa da minha vó. Quando a minha mãe se separou, passamos uns dois anos morando ali. Quem queria estudar e era de Conceição precisava dar um jeito de ficar em Mangaratiba. Fui “doada”: ajudava em uma casa de família em troca da estadia para poder estudar. Não apenas eu, como minhas primas também. Meus irmãos sofreram muito por ter que sair pra estudar em Ibicuí. Foi assim até que a minha mãe conseguiu comprar um terreno do Sr. Emil de Castro para construir sua casa, onde mora até hoje. Minhas recordações da infância são do chão de barro, fogão à lenha, chupar cana. Lembro dos banhos de bacia. Os primeiros eram beneficiados, os últimos tomavam banho de xixi! Às 6 da tarde tinha uma fila pra pedir a “Bença, vó”. Eu passava os três meses de férias com ela e era tudo de bom. Minha adolescência também foi em Conceição. Ia nas procissões com a minha vó. Assim que acabava a missa, as adolescentes iam para o fim da procissão para beijar os garotos e, quando a procissão voltava elas iam pra perto das avós e começavam a rezar. “Vocês pensam que me enganam?”, minha vó dava bronca. Lembro das “meiotas”, a cachacinha que ela gostava de tomar. Minha tia “Magali”, na verdade, se chama Maguiles: meu avô, quando foi registrar a filha junto ao Seu Filhinho, já tinha tomado muita cachaça e não conseguiu pronunciar o nome direito. Mas a filha só descobriu anos depois que em sua certidão estava Maguiles, e não Magali. Eu contesto o benefício da rodovia Rio-Santos. Apesar da lancha, Conceição era preservada. A cachoeira do Tobogã era ótima, podiam beber as águas de todas as cachoeiras. Hoje, as cachoeiras estão sendo destruídas. Com a Rio-Santos, muitas pessoas morreram afogadas. Outras morriam ao escorregar nas cachoeiras e bater com a cabeça nas pedras, Rabecão saia daqui chapado, com quatro ou cinco mortos. A lancha era ruim, mas Conceição era o paraíso. Uns anos atrás eu organizei um bloco. Arrumei o jipe, todos se vestiram de amarelo e preto e desceram, puxando o bloco. Quando chegamos lá embaixo estava tão cheio que resolvemos voltar. O carnaval, como a gente conhecia, já não existe mais em Conceição. Eu e Fernanda tentamos, mas não deu. Descemos cantando marchinhas de carnaval pela rua em um grupo de cerca de sete pessoas, mas só. O seu Dito Filinho era quem tocava a Folia de Reis com os familiares dele. Eles iam de casa em casa, inclusive na nossa. Beto, Abelardo e os outros meninos eram da Folia. A gente ficava todos os anos esperando. Seu Filinho tocava forró na sanfona. A gente oferecia café, biroró e cachaça. A última folia que o seu Filinho fez foi lá em cima. Ele já estava muito velhinho, todo mundo tomando muito cuidado com ele. A família do Dito Filinho tem mais versos do que a nossa, a gente pra eles, mas ainda não deram. Temos 12 versos. Anotei os versos que sabia da minha avó cantando poucos meses antes de ela falecer. Quando seu Dito Filinho morreu ficamos órfãs de folia. Um ano sem fazer em memória dele. No ano seguinte, decidimos fazer. Reunimos o pessoal que toca sanfona e outros. Em novembro, a gente reúne a família para decidir o que fazer no Natal, Ano-novo e Folia de Reis. As pessoas ficam um pouco cabreiras, com medo de receber gente em casa, então passamos a agendar as visitas. Em relação ao dinheiro da manutenção dos instrumentos e da confecção da indumentária, a gente recolhe um dízimo. Meu irmão, que é o “tripa”, ou palhaço que tem a melhor garganta, que consegue dar o grito. A folia então começa com os versos, aí vem o “tripa” coletando os dízimos. Usam o dinheiro também para comprar os acessórios. E a pessoa mais velha leva o estandarte, e nós vamos atrás cantando. O dono da casa recebe o estandarte, percorre a casa com ele pedindo proteção, e depois devolve para o grupo ir para outra casa. O estandarte hoje está na casa da minha mãe, então começamos o percurso por lá, fazendo a despedida, para então seguir para outras. Para ir a Mangaratiba alugamos uma van, já que vão de 3 a 15 pessoas no cortejo. A gente começa só com o grupo principal e os outros vão se juntando conforme vão passando pelas casas, então começam às vezes com cinco e, depois de passar por várias casas, termina com mais de 30. Eu incentivo os jovens a irem, cantarem, participarem, senão vai acabar. Uma vez fui convidada para apresentar o que é a Folia de Reis em uma escola de Itacuruçá. Expliquei, cantei um pouco dos versos e fiquei triste com a reação deles, olhando torto: “Isso é macumba?”. Na juventude, fazia luau na praia, com biscoito Piraquê e violão. Minha primeira referência de praia é o frescobol. A praia é perigosa, porque tem muito banco de areia. Uma das brincadeiras de infância era brincar de pique na cachoeira, pulando sobre as pedras sem cair. Para ir aos bailes, andando pelas trilhas sem lampião e às vezes nem lua, ninguém tropeçava e caía, de tanto que conheciam os caminhos. Na época de escola, pegava praia na Ribeira, em Ibicuí, na Filgueira. Eu não era muito de sair por causa dos compromissos com a escola. Era muito devotada aos estudos, eu adorava ler. Morei na vila até os 19 anos, quando me casei, e depois mudei para Muriqui, onde moro até hoje. Acordava às 5 da manhã pra pegar ônibus para Benguela, onde dava aulas e era diretora pela manhã. Saía de lá meio-dia pra pegar às 13h no Coronel, onde ficava até às 17h, indo direto pra faculdade, voltando meia-noite ou 1h da manhã, pra acordar às 4h de novo no dia seguinte. Eu adorava trabalhar na Benguela, onde era muito acolhida pela comunidade. No sábado, dormia, e no domingo tinha que fazer 30 planos de aulas para os dois colégios e os trabalhos da faculdade. Quando era criança eu queria ser atriz, mas minha mãe disse que eu tinha que ser professora. Afinal, sendo professora, consegui ser atriz e tantas outras coisas. Me realizei. Fui professora no curso de formação de professores no Montebelo. Era muito exigente e fazia questão de ensinar as futuras professoras que elas tinham que se dedicar. Nunca entrei em sala de aula triste. As outras professoras dizem que meus olhos brilham quando estou na sala de aula. Apesar de ter nascido em Mangaratiba e morar em Muriqui, meu afeto está em Conceição. Adoro o cheiro da terra, das plantas, das cachoeiras. Sinto saudades do chão de terra batida, do fogão à lenha, de ficar com o nariz preto, dos papos, dos jogos de baralho; de quando era adolescente e ia pra praia e pro forró tranquilamente, sem nem precisar de luz.