Eu nasci em 1961 e sou irmã da Gilsara. Nossa família sempre viveu na Praia Grande. A gente ficava muito à vontade. As casas eram poucas e afastadas umas das outras. Só tinha mato e a rua principal de terra. A iluminação era de lampião e a água era de cachoeira, encanada. É assim até hoje. Era um tempo muito bom. Minhas irmãs e eu íamos e voltávamos da escola em Muriqui no trem Macaquinho, de madeira. Ia pra estação e ficava esperando, pegava o trem me escondendo do condutor, para não ser cobrada. Meu pai tinha um bar. Único comércio que vendia comida e salgadinhos, foi aberto por volta de 1965. Depois foi passado para o filho, o esposo de Irene. O casamento lá foi à luz de gerador. Ninguém tinha televisão. Com a Rio-Santos e a eletricidade, as pessoas de fora começaram a chegar, comprar terrenos e construir. O bairro foi aumentando. A gente morava em uma casa enorme. Acordava cedo e via os pescadores nas canoas, todos os dias. A gente corria para a praia para pegar peixes. Nossa família fazia muitas festas no bairro. Meu pai era caçador, ia para a mata à noite, dormia lá e voltava de manhã com gambá, ouriço, porco do mato. Ele juntava todo mundo pra comer depois. Meu pai era analfabeto e o dono da casa ficava perturbando ele. Os filhos não deixavam eles conversarem sozinhos porque sabiam da intenção do dono, Seu Marcílio. Aí ele foi se irritando até que um dia que o dono pegou pra conversar sozinho, botou a impressão digital dele num documento e despejou a família, do dia pra noite. Era uma casa de pedras da época da escravidão. Nós compramos um terreno em frente, às pressas, no dia seguinte, para ter pra onde ir. Construímos a casa lá. Eu já ajudava na cozinha do bar e em 1988 comecei a trabalhar como servente na Escola Municipal Praia Grande, que tinha acabado de ser municipalizada. Era um prédio só e tudo era mato em volta. A frente da escola era na rua da praia. A diretora era Rita Elza. Luiz Antonio pediu então que a prefeitura mandasse uma equipe de manutenção, para limpar tudo, e elas pudessem botar a escola em funcionamento. Depois da última enchente, tudo foi reorganizado, a escola foi ampliada, e as coisas melhoraram. Nem tinha alunos na escola nessa época. A partir dessa reordenação que colocamos os filhos pra estudar ali. Lembro com afeto da época do trem. Lembro também que minha mãe era uma mulher que gostava de cuidar e de ajudar os outros. Era uma mulher muito querida por todos, acolhia todo mundo em casa, mesmo sem conhecer. Dizem que puxei isso dela. Uma vez, minha mãe acolheu um homem estranho que bateu na porta. Era muito feio e a gente ficou com medo, pedindo pra ela não abrir a porta, mas ele disse o nome do Seu Januário e ela abriu. Ela colocou o homem sentado, fez jantar pra ele, arrumou uma cama pra ele dormir. Eu não consegui dormir com ele em casa. Ele fazia barulhos estranhos e eu pensava que ele ia me pegar. Pedia pra mãe mandá-lo embora. Depois disso, ele ficou no bairro e morou muitos anos na Praia Grande, era o Sr. Levi.