DAILA PUXAREM

ITACURUÇA

Eu nasci em 1967 e fui criada em Itacuruçá, na Fazenda Santana, propriedade que foi cortada pela linha do trem. Minha casa fica na antiga “Estrada da Fazenda”, hoje “Estrada João Menino”. Era conhecida como “avenida”. Quando se entrava na avenida tinha uma vila: as casas se agrupavam em trincas, com um espaço para a trinca seguinte, e assim por diante. Essas casas eram propriedades da fazenda, então não se podia mexer nelas, mesmo que estivessem caindo, porque o dono, Seu Décio, não deixava. Ainda assim, eu e as outras crianças entrávamos escondidas para comer jabuticaba. Sou descendente de escravizados que permaneceram na Marambaia. Minha avó foi servir na casa grande, se envolveu com um padre jesuíta, o Padre Olavo, e formou-se a família. Foram para Angra dos Reis, onde minha mãe conheceu meu pai, um descendente de indígenas com italianos. Se estabeleceram então na fazenda do Seu Décio. Depois, meu pai conseguiu comprar um terreno “fora”, ou seja, abaixo da linha do trem. Na época, a água chegava até a porta da igreja. Lembro que frequentava a pracinha com a minha mãe, saía escondida junto com uma prima para pular da ponte no rio e para tomar banho no poço da cachoeira, e vínhamos voltando pela água até onde hoje é a Escola Cecília Ferraz, e do outro lado era uma areia branquinha. Esse cenário mudou quando a Marina se instalou. A fazenda tinha uma usina que gerava luz para os moradores das casas que pertenciam à fazenda. Era uma luz muito fraca, como se fosse a chama de uma vela. Antes da construção da Marina, existia na Ilha de Marambaia a Escola de Pesca Darcy Vargas. Todos os meses, vinham caminhando pela estrada cerca de 40 bois, que desembarcavam em Itacuruçá e, na hora da maré baixa, uma barca tipo 'chata' chapava no mangue para que os bois embarcassem e, na maré cheia, fossem levados para a escola, onde era abatido um boi por dia para alimentar os internos. A brincadeira dos garotos de Itacuruçá era acompanhar esse embarque dos bois, correr atrás dos que se desgarravam. No governo Itamar Franco, os terrenos que tinham sido adquiridos para a construção das residências para a Companhia Siderúrgica Nacional 2 (CSN 2), cuja indústria seria em Itaguaí, começaram a ser vendidos. Como foi na mesma época da construção da rodovia Rio-Santos, o comprador aproveitou as pedras que estavam saindo da estrada, da construção dos túneis, e colocou na orla para fazer o costado da Marina. Depois dragou todo o lodo para a construção dos prédios. Até então existiam apenas cinco famílias morando no local. Algumas famílias pelo mangue, entre elas a do sr. João do Mato, que fazia um pão doce que eu amava comer. Ele andava pelas ruas levando-os em um cesto enorme. O mangue era um viveiro de espécies e passava, inclusive, um grupo de botos sempre no mesmo horário à tarde. Na praia, ficava o entreposto de pesca, que acabou não sobrevivendo com a dragagem do mangue e a mudança do ecossistema local. A mesma coisa aconteceu em relação à fazenda. As casas eram cedidas para as famílias, 60 no total. Nos anos 1970, com a falência da fazenda, as famílias entraram com pedido na justiça para usucapião dos terrenos. Mas o processo demorou e, como havia muitas dívidas da fazenda com a prefeitura, vários desistiram e começaram a vender parte de suas terras. Meu pai era barbeiro, cortava os cabelos de todos os moradores de Itacuruçá e das ilhas, que vinham trazer os pescados. Minha mãe era do lar e dava aula de crochê para as meninas. Ela não deixava eu participar do carnaval, mas eu conseguia ouvir todo o baile de carnaval que acontecia no Iate Clube, porque minha casa ficava em frente à sede antiga do clube. Quando dava seis horas da manhã eu ia na janela do quarto e ficava olhando os foliões tomarem banho – porque ainda não existia a ponte do meio. Na terça-feira, último dia de carnaval, como os foliões não queriam deixar o salão, a banda vinha trazendo os foliões até a praia, onde tomavam banho de mar fantasiados e muitos dormiam ali mesmo. Tinha a festa de Sant'Anna, com Raimundo em um palanque fazendo leilão – geralmente de gado, mas não só. As ruas em frente à igreja de Sant'Anna eram tomadas de barraquinhas. Depois de uma certa hora entrava o forró, com o povo dançando até a Banda 27 de Fevereiro parar. Eu assistia tudo da varanda de casa. As festas de Itacuruçá eram juninas e julinas: Santo Antônio, São Pedro e depois Sant'Anna. As pessoas de Muriqui iam andando pela linha do trem, muitas vezes para apanhar, uma vez que tinha uma rixa entre Muriqui e Itacuruçá. A queima de fogos da Festa de Sant'Anna era feita em frente ao píer de madeira. Lembro também das canoas largas que transportavam bananas. Criança, eu esperava que as canoas passassem e pulava no mar para recolher as bananas que ficavam boiando na água. Como a estufa ficava embaixo da minha casa, o Seu Zé sempre me dava uma penca bem grande. Recordo também que chegou a ir de excursão para Conceição de Jacareí, assim que inaugurou a rodovia Rio-Santos. Como a comunidade tinha ficado isolada até então, tudo ali era ainda “nativo”. Sinto saudades de como eram as festas, com pau de sebo e corridas de canoas. Minha mãe não deixava que eu competisse, mas eu sempre pegava uma canoa escondida e atravessava para a Ilha de Itacuruçá. Aprendi a remar assim: em canoa pequena, em pé, com um remo só. Sobre o crescimento desordenado de Mangaratiba como um todo e, especificamente de Itacuruçá, e como o carnaval acabou padecendo pelo excesso de gente que se acomoda nas quitinetes que foram construídas desordenadamente pela cidade, digo que, apesar da responsabilidade da prefeitura, os próprios moradores também são responsáveis pela desordem instalada na cidade. No início dos anos 1990 a fazenda faliu, a prefeitura perdoou a dívida e passou a tomar conta dos assuntos da propriedade, em especial a questão fundiária, e começou o processo de regulamentação das terras dos moradores antigos da fazenda. A terra em que nasci tinha um bom quintal, praticamente uma chácara. Quando meus pais morreram fiquei sozinha no terreno com meus filhos e marido. Sabendo da situação da fazenda, dei entrada na Justiça para usucapião. Um dia, funcionários da prefeitura abriram meu portão e entraram sem perguntar nada e começaram a medir tudo. “Posso ajudar?”, questionei. A resposta foi: “Aqui consta que você mora sozinha nesse terreno, e dá pra dividir para mais famílias”. “Negativo”, retruquei, “Vamos conversar. Aqui moro sozinha sim, mas a minha irmã mais velha está com quase 70 anos e ela nasceu aqui, então nós vamos para Justiça. Ponham-se daqui pra fora!” Alguns meses depois, fui chamada na prefeitura. “É essa daí, ó”, disse seu Mário Moreira, funcionário da Prefeitura, que me conhece desde que nasci. “O que foi, seu Mário?”, eu quis saber. “É, com você não tem jeito não, né?”, e eu respondi: “É, não tem jeito mesmo, não”. Ele me deu um sorriso e recebi logo em seguida meu título de propriedade. Cumpri a vontade do meu pai que, em vida, tinha dito quais partes do terreno ficariam para cada um dos filhos e dividiu o terreno com seus irmãos. A questão é que outros moradores que ficaram com terrenos grandes também foram vendendo para pessoas de fora, que foram construindo desordenadamente ao longo da estrada velha, para baixo e para cima. Várias dessas construções são quitinetes, muitas feitas pelos próprios moradores. As pessoas foram chegando com a melhoria da estrada. Houve uma explosão ainda maior com o Arco Metropolitano. Foram comprando os terrenos “da linha do trem para cima”, onde ainda tinha espaço. Boa parte são veranistas, outros vêm da Região Metropolitana do Rio de Janeiro em busca de oportunidades na cidade. A ocupação desordenada se deu especialmente após a instalação da Rio-Santos. Itacuruçá e Muriqui, especialmente, por serem ainda muito perto da Baixada, são as que mais foram afetadas. Passou a acontecer muitas ocupações por invasão também. Muitas áreas da cidade, hoje com ocupações desordenadas, passaram a ser invadidas a partir do início dos anos 2000. A Vila Benedita, até 2003, não tinha a densidade que tem hoje, até porque tinha um lixão na área. Foi apenas depois de 2003/2004 que começou o loteamento. Era uma área que a prefeitura recebeu como compensação por um loteador e parcelaram em terrenos pequenos e começaram a distribuir. Ali, tinha só um morador antigo, da época da estrada de rodagem, o Sr. Jonas. Antes do lixão, a área era o sítio do pai do Kakau.

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