Vânia Maria Alves Guerra dos Santos

MARAMBAIA

Nasci em 1958 na Ilha da Marambaia, numa família de descendentes dos escravizados que restaram da senzala do porto de cura e engorda, que os distribuía para o depósito de pretos do Sahy e para as fazendas do Sul Fluminense. Meus avós, Domingos e Marcelina (Dona Pichela), eram muito estimados na comunidade, lideranças naturais que eu gostava de acompanhar ouvindo as conversas atrás da porta. Da infância, tenho mais lembranças boas do que ruins. Lembro da pescaria de tainha na Praia do Sino, que começava em abril com a pescaria do paraty, e era quando as crianças mais aprontavam, porque ficavam mais soltas. Saiam da Praia da Pescaria Velha, de madrugada, para a Praia do Sino e, às vezes, dormiam lá sem abrigo, sem coberta e sem mãe, só um monte de crianças jogadas na praia. Os pais ficavam esperando as mantas para cercarem os peixes. Era no rancho da família Firmo. Havia um entrosamento entre as pessoas, um ajudava o outro durante a pesca e, quando terminava, o dinheiro da pescaria era usado para comprar o material para as casas das famílias. Ainda que bebessem muito, trocavam as pernas colocando sapê nas casas, era incrível. Também lembro das casas muito simples, de estuque e sapê, que tinham muitas goteiras e se desfaziam com o vento. Meu padrasto e o irmão dele, Balbino (meu padrinho, que era gago), se comunicavam pelo eco do vale, um olhando “a banda do sino” e outro “a banda da porta do furando” para identificar a viração. Se meu padrinho demorasse a responder era porque tinha ficado nervoso e o vento tinha levado tudo. Então sua mãe acolhia Balbino e família em casa até reconstruírem a casa deles. Na ilha, também tinha a Escola de Pesca Darcy Vargas, construída na década de 1940 pelo Governo Federal para receber jovens carentes de todo o Brasil e formá-los não só em pesca, mas até em engenharia. Poucos moradores da Marambaia, apesar de serem carentes, conseguiram acesso à escola (lembro do Coronel, do Seu Naná e mais uns quatro). Apesar das mulheres não poderem estudar, elas tinham trabalho, como lavar e passar roupa e limpar peixe na fábrica de sardinha. Isso ajudava a comunidade. Quando eu nasci, entretanto, a escola já estava começando seu processo de decadência. Estudei apenas até a quarta série, porque era o que tinha na escola local. Depois disso fui trabalhar como empregada doméstica. Aos 11 anos, pedi para a patroa dinheiro para comprar uma roupa e ouvi: “Você quer dinheiro? Você tem que dar graças a Deus e tem que continuar trabalhando para pagar a comida que você come e o teto que te abriga”. E continuei trabalhando assim por mais alguns anos. Eu digo que todo remanescente de quilombo faz esse trajeto: sai de ser escravo em uma fazenda para continuar a lida de escravidão na cidade. Nos anos 1970, a Marinha assumiu a ilha e acabou com a pescaria, tanto da escola como da comunidade. Passou a implicar e até humilhar os moradores, querendo que eles deixassem a ilha. Eu sempre fui brigona, batia de frente com os militares para defender a comunidade, e às vezes ouvia conselhos dos outros moradores para que me cuidasse porque algum militar tinha dito que “ia quebrar as minhas pernas”. Com as restrições, a comunidade mudou muito. Não deixavam construir casas. Na minha, era um casal e 15 filhos numa casa de quatro cômodos sem banheiro. Foi quando eu percebi que éramos justos, já que não desmatamos e não destruímos nada. Ao contrário, sempre fizemos questão de preservar as matas e os bichos. Casei, mas fiquei viúva muito cedo, com uma filha de um ano para criar. Em 1983, pedi então para reabrir a igreja da comunidade, que estava fechada há seis anos, e os militares não deixaram. Na discussão, um deles chegou a me chutar e eu o chutei de volta. Por fim, o capelão mandou que me dessem a chave, pois não fazia sentido a igreja ficar fechada e virei a catequista da comunidade. A primeira coisa que fiz foi bater o sino. Quando deu três horas, a comunidade estava toda na igreja para a missa. Eu tinha 24 anos e foi quando tive a oportunidade de começar a mobilizar a comunidade, nessa época predominantemente católicos e umbandistas. Passei a representá-los. Em outubro de 1997, soube que ocorreria um congresso sobre educação na vila com o tema “Escola que temos e a escola que queremos”. Foi quando apareci para falar como mãe na escola da comunidade da Marambaia. Contei que a escola na ilha ia só até a 4ª série e, a partir dos 10 ou 11 anos, tinham que atravessar para o continente na lancha das 5 horas da manhã. Como a aula acabava na hora do almoço, ficavam sem comida e sem destino, perambulando sozinhos por Itacuruçá até a lancha das 7 horas da noite, mas as crianças de locais como Pescaria Velha, só conseguiam chegar em casa por volta das 9 horas da noite, para sair no outro dia às 5 horas da manhã novamente. A escola que nós queremos é a que sabemos onde estão nossos filhos, eu disse no palco para todos. Foi um choque, porque tinham muitas crianças nessa situação. A secretária, então, exigiu que a partir do dia seguinte as crianças permanecessem na escola até o horário da lancha, com atividades e comida, até que pudessem implantar uma escola na Marambaia. Em março do ano seguinte, a escola já estava funcionando e eu pude vestir novamente um uniforme e terminar os estudos, na mesma sala que a minha filha. A comunidade então recebeu um pedido de reintegração de posse por parte da Marinha, nos taxando como “invasores”. Queriam fazer da ilha um resort para oficiais. Questionei muito, alegando que o “Aurélio” diz que quilombolas são os que formam o Quilombo, que é uma comunidade de negros fugidos. E perguntando: “O senhor, comandante, pode me dizer como chama uma comunidade de negros roubados? Por que já que eu, meu avô, meu bisavô, fomos roubados - eles partiram, e nós continuamos aqui e daqui não saímos – então, como é que nós invadimos alguma coisa, se nascemos aqui?”. Foi quando comecei a fazer contato com o Movimento Quilombola, o MNU, o Tortura Nunca Mais, e o Justiça Global e outros movimentos que ajudaram com o processo. Depois de anos proibidos pela Marinha, em janeiro de 2003, nós finalmente conseguimos montar a Associação da Marambaia. Em outubro do mesmo ano fundamos a Associação Estadual para que os quilombos do entorno se comunicassem. A Marinha chegou a ganhar instâncias, mas ganhamos no STJ em 2011 e fomos reconhecidos como comunidade. No mesmo ano, o programa Luz Para Todos finalmente pôde instalar energia elétrica. E em 2014, passamos a ter a titulação como Quilombo da Marambaia. Infelizmente, muito da nossa cultura se perdeu. Não fazemos mais cestos, tem a casa de farinha, mas não tem mais sequer terra para plantar mandioca porque um pouco antes da titulação a Marinha emitiu um TAC (Termo De Acordo De Conduta), e recolheu as roças, as bananas e tudo que tínhamos. Meus netos não sabem mais como plantar um aipim ou uma cana, e meus bisnetos não vão saber. Por causa dessa TAC, passaram a exigir da comunidade laudo ambiental para construções, mas nem o IBAMA nem qualquer outro órgão sabe como isso tem que ser feito. Mesmo com as dificuldades, fazemos o que podemos para que a cultura se perpetue. Não conseguimos retomar o cateretê, mas conseguimos o jongo, que já ensino para a minha neta de 3 anos. Em 20 de novembro, nas ruínas da senzala da fazenda de engorda de escravos que nós preservamos, é realizada a principal festa do Quilombo, muito bonita, com uma boa feijoada, jongo e capoeira. Sinto saudade do povo de Mangaratiba, que era uma bagunça, todo mundo ria, todo mundo brincava, mas agora encheu de veranistas e os lugares que eles frequentavam não existem mais, como a Praia de Junqueira. Também sinto falta do trem, que queria que voltasse, nem que fosse só até Itacuruçá. E, para finalizar, declamo um trecho de poesia autoral: “É por isso que é preciso gritar. Me deixe continuar a existir. Não permitam que eu caia. A quem interessar, Atenciosamente. Marambaia”

Outras histórias

No more posts to show