CARY CASSIANO CAVALCANTI FILHO

MANGARATIBA - CENTRO

Nasci em 1951, no Rio de Janeiro. Meu pai era de Mangaratiba, mas morava no Rio: primeiro em Piedade, depois Cavalcanti e então foi para Cascadura, onde dava aulas num colégio. Conheci Mangaratiba no colo do meu pai. A cidade para mim sempre foi sinônimo de férias. Era onde eu podia ir até a padaria sozinho, andar pelas ruas sozinho, mas não muito longe, que meu pai não deixava. Meu avô era um comerciante bem-quisto, dono de um Secos e Molhados que vendia principalmente querosene, café, arroz e fumo. Era o único que vendia querosene a varejo. As pessoas chegavam com garrafas para encher de querosene para seus lampiões porque a luz era fraquíssima. Minha irmã e eu ajudávamos e atrapalhávamos. A gente misturava feijão com farinha nas baias de madeira expositoras e meu avô ficava bravo. Minha vó tinha fama de ser muito séria, mas era muito carinhosa comigo e minha irmã. Meu pai tinha que estar sempre na cidade por causa da política, era muito atuante na cidade. Foi político, vereador. Então, nos finais de semana, a gente pegava o trem na estação de Cascadura para Mangaratiba. O pai do Cícero controlava a estação. Da viagem, lembro que, criança, ficava perguntando para meu pai durante o trajeto se faltava muito pra chegar. Meu pai então desenhava à caneta um relógio no meu pulso e dizia: “Quando esse ponteiro sair daqui e chegar aqui é que nós estaremos chegando”. Mas o que era marcante para mim de “estar chegando” era quando o trem se aproximava da estação da Pedreira, de Brisamar, os garotos vinham anunciando: “Bananada Tita! Bananada Tita! Quem vai querer Bananada Tita?”. O trem vinha pela orla e, em alguns trechos, as pessoas que estavam paradas na praia podiam encostar nos passageiros do trem, de tão próximo que passava. Eu ficava mudando de vagões durante a viagem para tentar fazer o tempo passar. Eu sabia todas as estações. A estação de Mangaratiba ficava em frente à praça que tinha na frente da igreja, onde hoje é o estacionamento. Quando entravam na vila, minha avó e minha tia estavam na janela e, assim que íamos chegando, elas acenavam. E sempre faziam farofa de ovo, bolo cozido, e outras comidas que marcaram minha infância, e que depois registrei na poesia que fiz sobre a cidade. O trem “levantou” a cidade que havia morrido no final do século XIX. Trazia os veranistas. O Buriti surge dos veranistas. Mas eram veranistas frequentes, e todos sabiam quem eram e eu mesmo era um. Em janeiro, todos chegavam juntos na cidade, se encontravam e confraternizavam com os locais. Já a rodovia Rio-Santos não trouxe as mesmas alegrias do trem. Para mim, a chegada da estrada teve ônus e bônus. O bônus foi que a Rio-Santos ligou o município por terra, já que alguns pontos eram muito isolados. Conceição do Jacareí nem parecia que pertencia à cidade. Além disso, aumentou a possibilidade de emprego, não só com o porto, mas também indo para Angra dos Reis, trabalhar no Estaleiro da Verolme, por exemplo. Mas teve o ônus social da prostituição, não só de mulheres vindas de outras regiões como da própria cidade, atraída pelos tripulantes estrangeiros do porto e o pagamento em dólares. Além do fato de não ter tido uma proteção patrimonial e ambiental, que gerou o crescimento dos condomínios, que vieram com a estrada. Quando os condomínios chegaram, foram fechando o acesso à praia, embora muitos não pudessem fazer isso, e a integração foi acabando. Ibicuí era a praia mais linda e acabou. A estrada de ferro para passageiros acabou por volta de 1984 e 1985, com o fim da circulação dos trens e, na gestão do Capixaba, os trilhos foram retirados. É bem próximo à chegada da estrada. O trem hoje vai até o Santo Antônio, onde pega a ponte ferroviária para o porto, mas só leva minério, nem sequer os funcionários mais. Então cria-se uma lei de proteção dos costões, mas que eu creio nunca ter sido homologada. E há uma invasão do costão de ponta a ponta. E a própria Rede vende a sua área de proteção, dando prioridade a seus funcionários e ex-funcionários. Então ao mesmo tempo que a estrada foi boa porque trouxe crescimento e permitiu às pessoas estudar e trabalhar, por outro lado houve esse ônus. Como sempre acontece nas grandes obras, não há proteção para os trabalhadores, trazidos de todos os cantos do país. Quando a obra acaba são abandonados. Assim, surgem as favelas e as ocupações irregulares. Em Mangaratiba, cito a ocupação da Praia do Saco, da Rua da Várzea. A cidade mudou muito rápido com a chegada da estrada, a população cresceu muito. Trabalhei 23 anos como professor na cidade. No início, conhecia todo mundo e, no final, já não conhecia mais ninguém. Não sabia quem era quem, não conhecia as famílias. Os mais novos não têm identidade, não têm sensação de pertencimento. Existe uma noção imediatista de Mangaratiba, de só reconhecer aquilo que você viu. Se não viu, não reconhece. Há uma falta de identidade, as pessoas não se envolvem com a história, com a cidade. Usam a cidade, mas não se envolvem com ela. Por exemplo, fazem uma arruaça porque o Neymar tem casa no Portobello, mas o Neymar não tem ligação nenhuma com a cidade, não tem nada aqui, ele nem chega na vila. Mas se pergunta quem é Mário Peixoto, “Ah, eu não sei”. Stallone fez um filme na cidade, foi um alvoroço. Agora o filme tá perdido por aí e ninguém sabe onde aparece. 'Limite' é considerado um dos principais filmes do mundo e ninguém sabe. Meu pai me educou para saber que no chão onde eu piso estão as cinzas dos meus antepassados. Minha filha nasceu em Niterói e aos cinco meses se mudou para Mangaratiba. Ela cresceu, se alfabetizou e estudou na cidade. Muita coisa da cidade se perde porque depende de gestor político. A escolinha Maria Augusta Lopes, onde minha filha foi alfabetizada ali lendo livros de história, era um espetáculo, mas hoje já não é mais assim. Minha filha foi alfabetizada antes do primo, que estudava em um excelente colégio do Rio de Janeiro. Quem sente mais os problemas de Mangaratiba são as crianças e, principalmente, os adolescentes, porque não têm nenhum investimento para eles. Crianças ainda têm parquinho, praia, mas adolescentes não. O cinema, por exemplo, acaba em definitivo no início dos anos 1980. Teve alguns donos: primeiro a família Januzzi, depois o Barreto, que também tinha cinemas em Copacabana, e depois, com a divisão do patrimônio da família, ele ficou nas mãos de Osmar Januzzi, que tentou arrumar, mas não era o negócio dele, que era engenheiro e tinha trabalhado nas docas. O Centro Cultural, criado e anexado à fundação entre 1986 e 1888, oferecia teatro infantil, cinema, passavam filmes na parede da fundação e da igreja, em parceria com a Secretaria de Cultura do Rio, mas acabou se perdendo porque não houve interesse da gestão em continuar. Lembro que o esporte era muito movimentado na cidade, na quadra e na praia. A garotada jogava vôlei e futsal. Hoje em dia se encontra de vez em quando meia dúzia de pessoas jogando, mas não tem mais organização. Quando eu era professor, estimulava que meus alunos fizessem prova para a Universidade Rural. Eles reclamavam que é longe e eu contava que um aluno morador de Santa Cruz que estuda na UFF, por exemplo, não demora menos de duas horas para chegar e, como todo o transporte ruim de Mangaratiba, ainda demora menos de duas horas para chegar na Rural. A distância entre Mangaratiba e a Rural é de cerca de 30 km e com o Arco Metropolitano ficou ainda mais rápido. O transporte público na cidade, ainda hoje, é inviável. Não há uma ligação rotineira entre os distritos. Isso impede que as pessoas participem das atividades, especialmente à noite, porque não conseguem voltar para casa. Lugares como Ibicuí, Figueiras, Junqueira e Ribeira eram muito bem servidos pelo trem, mas com o fim da linha, acabaram ficando abandonados já que a estrada passa longe. Até para ônibus é difícil porque as ruas são íngremes e estreitas. O transporte marítimo teve um grande empreendedor, que foi o Dib Simão, e conectava os distritos até a chegada da Rio-Santos. Simão criou a Companhia de Navegação Sul Fluminense, que hoje foi substituída pela CCR, e a agência ficava onde hoje é o Bradesco. O transporte entre a vila e Paraty, contando com outras localidades como Conceição e Angra, que demorava mais de cinco horas, só passou a existir com a Companhia Sul Fluminense. Eram três barcos grandes: Brasil, Vencedor e Patrício. Eram como os primeiros barcos que faziam a travessia entre Rio e Niterói. A Companhia chega no final dos anos 1940 (talvez 1948) e fica até o meio dos anos 1970, mas já tinha sido assumida pelo Estado, na Conerj. Nessa mudança de gestão, também mudou de trajeto e parou de atender Conceição do Jacareí, por exemplo. Tinha barco para lá, mas não mais da Conerj. Com a estrada, essa opção acabou e hoje se restringe ao acesso à Ilha Grande. Lá teve um atracadouro antes deste atual, e o “histórico” ficava no “Sapeca”. Vinham muitos visitantes ver os presos, em geral mulheres, e às vezes elas faziam muita confusão na cidade, porque tinham pressa, devido aos horários de embarque, e queriam passar na frente de todo mundo no mercado, por exemplo. O Fórum ficava na Rua Coronel Moreira da Silva, em frente ao imóvel que era o armazém do meu avô. Os presos tinham que comparecer para prestar depoimento antes de serem transferidos, então a rua era tomada por policiais armados no meio da rua. A sensação para os moradores era muito ruim. Uma vez apareceu um corpo na praia e meu pai foi chamado para averiguar, não sei porque. Era um preso fugitivo que morreu no mar. Mas com a saída do presídio da Ilha, tudo foi tomado. Agora, além da travessia pela vila, tem um cais em Conceição de Jacareí. A fila para a travessia diminuiu um pouco com a pandemia, mas costuma ser enorme, e as pessoas não respeitam o trânsito, estacionam em qualquer lugar. Agora existem estacionamentos. O Cícero, por exemplo, tem um. Para mim, o único retorno da travessia é para os estacionamentos e para as pousadas. Mangaratiba acabou se tornando passagem. Não temos turismo, apenas veranistas que trazem tudo de fora, compram na cidade apenas o que esqueceram de trazer, quando muito vão a um bar ou a um restaurante. Diferente do turista, que vem para conhecer o local, dorme em pousada, descobre restaurantes, conta para os amigos, volta depois. Mangaratiba não tem essa identidade turística. Por isso, na minha opinião, os comerciantes locais ficam muito dependentes do governo. Há um tempo, foi feito um movimento para, de 15 em 15 dias, ter um evento de música na praça, mas aí mudou a gestão e os eventos acabaram. Havia um evento chamado Coro de Coreto, que não manteve uma rotina e por isso acabou morrendo. A gestão política foi tirando e mudando muita coisa. Mangaratiba sofre muito de bairrismo. Apesar de outros bairros terem espaço, as coisas são todas colocadas na vila, que já está lotada. E isso acaba destruindo o patrimônio da cidade, derrubando os prédios. E esse bairrismo também aconteceu com os clubes: o do Centro foi ficando ruim e eles não passaram a frequentar o de Ibicuí porque “não era nosso, mas de veranistas”, que construíram um clube enorme no Junqueira, mas fica vazio. Sinto falta do movimento cultural da cidade: Zé Carlos com o teatro, o festival de música, o clube e, especialmente, o carnaval. Não tinha confusão, eram vários blocos de carnaval de rua. Eu mesmo tive um. Quando perguntam quando eu vou voltar a colocar o bloco na rua, digo que não tenho mais coragem. A igreja tinha uma cantina que vendia muito, e na restauração da igreja o Iphan mandou tirar. Na festa da padroeira, lembro que todo mundo participava fazendo alguma coisa. Tinha leilão, bingo, shows e barraquinhas. Os shows eram pagos pela prefeitura e a arrecadação das barraquinhas era da prefeitura. O bingo era da igreja, até serem proibidos. A última grande festa foi em 2004, com show de Emílio Santiago. Na ocasião, ofereceram um show da Ivete Sangalo de graça para o prefeito e eu fui contra, alegando que destruiriam a praça inteira, porque a cidade não comportaria tanta gente. Ainda tiveram outras depois, mas passou a ficar cada vez mais tímida, com menos barraquinhas e menos gente. As pessoas que não moravam mais na cidade voltavam para a festa. Eu recordo que o fim das festas foi também consequência dos padres da paróquia depois do Padre Galdino, que não quiseram se responsabilizar pela parte social, querendo que a prefeitura cuidasse dessa parte. Sinto saudades de ir até a praça, bater papo com as pessoas.

Outras histórias

No more posts to show