CÍCERO ALESSANDRO LOPES

MANGARATIBA - CENTRO

Tive uma infância livre. Nasci em Barra do Piraí em 1934 e cheguei em Mangaratiba aos quatro anos. Meu pai era controlador de estação ferroviária. Morávamos no Centro. Lembro que a viagem de trem era bucólica, bonita. A praça ficava repleta de namorados esperando a partida ou a chegada do trem. Até pré-adolescente eu tinha estudado muito pouco, mas então fui enviado para o Rio de Janeiro pelo meu pai para me preparar para a faculdade e lá fiz o curso ginasial e o científico (hoje ensino médio). Passei a andar de trem sozinho por volta dos 15 anos e às vezes ia para o Rio. Cursei odontologia na capital e voltei para cidade em 1959. Meu pai queria que eu abrisse um consultório na cidade, mas eu não, porque a energia elétrica ainda era muito fraca. Mas acabei montando em uma casa perto da estação. Lembro de ter tido muita dor de dente na infância e que, na época, a cidade tinha dois dentistas “práticos”, sem faculdade. Quando abri meu consultório virei “colega” dos práticos, mas fui um dos primeiros a chegar na cidade para atuar tendo nível superior. Na primeira visita, achei que era um cliente e era o fiscal da prefeitura, Seu Mariozinho Mendonça, para formalizar o consultório. Tive três pontos diferentes ao longo dos anos: a casa da estação, a casa do João Alemão e a minha própria casa. Oferecia “odontologia para os brasileiros”. Humilde, não sofisticada – nem que eu quisesse poderia oferecer sofisticação porque o nível econômico era muito baixo. Os mais abastados se tratavam no Rio, então atendia basicamente as classes média e baixa da cidade. Mas não fiz odontologia para ficar rico e sim para atender os outros e viver bem. Tive contato com os descendentes dos indígenas na população da Ilha Guaíba. A clientela mais humilde não tinha dinheiro para tratamentos mais elaborados, como próteses. Eles eram da região, eu conhecia as famílias de vários caiçaras. Atendia gente da Marambaia, da Ilha Grande, de toda a região. Com a vinda do porto, em 1973, a clientela mudou. Passei a receber em dólar dos tripulantes e funcionários que chegavam na cidade. Conheci minha esposa Nelma muito novo. Casei-me com a bisneta do Coronel Moreira da Silva, que foi prefeito de Mangaratiba e em sua gestão o trem chegou à vila. O Coronel foi ao Rio conversar com o engenheiro Paulo de Frontin para convencê-lo a levar a estrada de ferro até lá. Lutou muito pra isso: em 1910 o trem chegou à Itacuruçá e em 1914, finalmente, à vila. A inauguração foi muito festejada com direito, inclusive, a um banquete com a presença do Presidente da República, Hermes da Fonseca. Fomos contemporâneos do jornalista Elio Gaspari. Lembro que, na ditadura, ao ser perseguido, Elio foi se esconder em Mangaratiba. Nas terras herdadas da família Moreira da Silva, montamos uma escola onde dei aula de geometria por nove anos. Depois transformei a escola em uma pousada junto com minha esposa, que era muito empreendedora, “política”. Então transformamos uma escola cheia de casinhas em uma pousada com bom estacionamento, onde os hóspedes podiam deixar o carro enquanto visitam a Ilha Grande, que agora tem uma infraestrutura turística muito boa, bem diferente de quando visitei pela primeira vez, ainda na época dos presídios. Havia dois presídios: o Lazareto e o da Colônia, que não recebiam apenas presos de alta periculosidade, como também presos políticos, como na intentona comunista de 1935 e outros. Lembro que o escritor Graciliano Ramos esteve preso ali e, assim, escreveu ‘Memórias do Cárcere’. No livro, o autor conta que passou por Mangaratiba, vindo de trem, que tinha a primeira e a segunda classes – os presos vinham na segunda. A saída do trem para o embarcadouro era muito rápida e o escritor não teve tempo de ver mais da cidade. Como recordação afetiva, lembro do trem, dos clubes sociais da vila onde eu ia dançar com minha esposa, e o cenário de interior, da “sociedade” que existia e não existe mais. Antes eu conhecia todo mundo, hoje não conheço mais ninguém. “O tempo é um químico invisível, que transforma tudo”.

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