JOÃO CARLOS DE ABREU (KAKAU)

MANGARATIBA - CENTRO

Nasci em 1945. Meu pai era alfaiate em São João Nepomuceno, Minas Gerais, e pós-guerra, com a situação econômica difícil, teve que fechar a alfaiataria. Havia na época um intercâmbio entre os alfaiates que viajavam atendendo clientes pelo país, e trocavam informações sobre vagas de trabalho. Assim ele ficou sabendo da existência de uma vaga em Bangu. Já no primeiro final de semana, a convite de um colega, ele pegou o trem Macaquinho e foi conhecer Itacuruçá. Ele tocava violão, cantava e tomava umas pingas, então quando chegou, há 75 anos, ele ficou maravilhado. Por coincidência, tinha um alfaiate no distrito que não queria mais ficar ali, queria ir para uma cidade maior, então eles trocaram de vagas. Já a primeira casa que ele ocupou quando chegou foi a que ele morou até falecer. Na minha infância, lembro de fugir da escola, fazia uma “gazeta”, corria até a praia para dar um mergulho e depois ia até o barco no canal. Passava o dia todo no barco, mergulhando, e no final do dia, quando a fome apertava, voltava para casa. Era o que tinha para se fazer. Itacuruçá era restrito até o campo de futebol, não havia luz, não havia meios de comunicação, e à noite os grupinhos se reuniam nas esquinas para conversar até umas dez da noite e depois cada um ia para sua casa. Como não tinha ainda drogas e violência, com 12 ou 13 anos de idade eu podia frequentar os bailes de adultos nos clubes. Os dois clubes (um mais popular e outro mais elitizado) faziam bailes como o de primavera e o de carnaval, por exemplo. Lembro muito de participar das Festas de São Pedro e de Sant'anna. Estudei em Itacuruçá até a 5ª série primária, depois meu pai achou que eu deveria aprender uma profissão porque ele não tinha meios de manter o filho em colégio (só disponível particular, na época, e ainda tendo que pagar a passagem de trem), então fui, assim como meu pai, me formar alfaiate, até completar a idade do serviço militar. Fui para o quartel e, quando voltei, tendo feito o curso de cabo no quartel, fui o único que não tinha segundo grau que conseguiu passar, e com grande facilidade de aprender, fui estimulado por um amigo a voltar a estudar. Com 22 anos, fui para Muriqui, no Nossa Senhora das Graças, fazer admissão para o ginásio, onde passei a compartilhar a sala com as crianças de dez anos. Fiz ali admissão, primeiro e segundo, e depois fui para o curso noturno em Itaguaí, no Cinco de Julho. Para chegar, pegava um trem às três da tarde e ficava esperando, estudando, até o início das aulas às 18h40. As aulas terminavam às 22h, mas só tinha trem pra voltar 0h30. Terminado o ensino, fiz Contabilidade e Direito em Campo Grande. Entre 1980 e 1985 atuei como advogado, abrindo um escritório de advocacia com alguns sócios no Rio de Janeiro, mas também atuando em Itacuruçá, mas por aqui eu fazia mesmo era política. Em 1976, fui eleito pela primeira vez para vereador no mandato de 6 anos até 1982. Em 1982, fui vice-prefeito. Em janeiro de 1983, Jacareí recebia 400 ônibus por dia, que geravam 20 mil pessoas sendo recebidas por uma população de 1.500 moradores, em uma vila caiçara. Esses ônibus estacionavam ao longo da rodovia Rio-Santos, por todas as ruas. Em uma ocasião, eu e Nelson, um vereador que lutava muito pelo município, tentamos ir à Jacareí ver como as coisas estavam por lá, mas não conseguimos chegar. Um cara com chapéu da Mangueira e sunga branca sentou no capô da Brasília do Nelson afugentando nós dois, que conseguimos manobrar o carro e voltar. E tinha o problema dos acampamentos nas praias, que começavam em Itacuruçá e iam até Jacareí, com mais de 2 mil barracas. A pessoa montava sua barraca na praia e ao lado fazia um quadradinho; cavava o quadrado, posicionava sobre uma cadeira sem o assento e usava como banheiro; saturava e ele tapava, então começava outro. Aí os visitantes, sem querer, ao passar entre as barracas nas praias, pisavam nesses buracos. A prefeitura então conseguiu, junto com a Marinha, proibir o acampamento em praias da cidade; e sobre os ônibus, criaram uma lei estabelecendo um número limite de ônibus para cada distrito e fizeram um trabalho junto à Flumitur para que não liberasse mais do que 10 ônibus por distrito por dia, regulamentação que conseguiu ser aplicada em trabalho conjunto com a Polícia Rodoviária. Essa fase, entretanto, foi muito danosa para o município. Destruíram as ruínas do Sahy, o lago da estação de Itacuruçá teve que ser esvaziado, porque os excursionistas faziam churrasco em baixo do arvoredo e depois iam tomar banho no lago e não tinha polícia que segurasse. Nessa fase, já se espalhavam também o fechamento das ruas com condomínios irregulares, que começaram a surgir com a abertura da Rio-Santos e se impõem ao bem comum até hoje. Lembro de uma vez que, como vice-prefeito, fui a Sítio Bom com o prefeito, Capixaba, em um carro particular e o segurança os impediu de entrar. Assim, começaram a se articular para acabar com a prática, mas não foi adiante. Ainda hoje os pseudocondomínios mantêm as cancelas, cercamentos e impedimentos de acesso de forma irregular. Em 1985, rompi politicamente com o prefeito e abandonei a vida pública. Fui vereador eleito logo nos primeiros anos da operação da Rio-Santos. A estrada se confundiu com a MBR, uma vez que chegaram na mesma época. Houve então uma onda de progresso para o município: a empresa trouxe muitos empregos e a Rio-Santos facilitou o acesso. A princípio era qualidade, depois a coisa começou a se complicar, por volta do início dos anos 1980, quando candidatos começaram a estimular as invasões em troca de votos. Faziam vista grossa, e permitindo que a Cedae facilitasse a instalação de água e a Cerj de luz elétrica. Foi quando começaram as ocupações de morros e encostas. Alguns vieram para servir na cidade, como mão de obra barata, e outros como veranistas, tanto pessoas humildes como abastadas, com boas e más intenções. Muitas pessoas vieram de diversos lugares do país para trabalhar nas obras da Rio-Santos e, como já estavam instalados aqui, acabaram ficando. O Zenon, da Pizzaria, foi um desses. Recordando a Festa de Sant'anna, tinha como um de seus incentivadores e personagens principais o Genoval, que fazia sopa de tartaruga. Ele era Jaguanum, filho de pescador, foi presidente da colônia de pesca. Seu restaurante marcou a história de Itacuruçá e de Mangaratiba. As pessoas vinham de fora para comer em seu restaurante, especializado em frutos do mar. Pouco alfabetizado, ele era muito criativo: criou o rodízio de peixes; criou as frases exóticas que ficavam expostas; pendurava um cavalo marinho no jaleco e ia fritar camarão no meio da rua, dando “show” para os passantes. Vinha gente famosa para comer a comida do Genoval. Seu lema era “Genoval Serve Bem”. Ele fazia festa de Cosme e Damião para as crianças, fazia festa sempre que podia. No salão, tinham os cascos de tartaruga pendurados, peixes vivos em aquários, papagaio solto e todo tipo de decoração pitoresca. Mas então, com a proibição da caça às tartarugas, ele foi processado e ficou muito mal. O restaurante ficava à beira-mar, próximo à capitania, e durou até 1994. Ele passou um tempo doente, acabou falecendo, sua mulher tocou o restaurante por um tempo, mas acabou fechando e hoje tem uma peixaria no lugar. Ele era tio da minha esposa. Em 1985, eu estava desgostoso da política depois da briga com o prefeito, e da advocacia, já que acabava passando muito tempo longe da família, mas não queria voltar a ser alfaiate. Já estava com a ideia de mudar os rumos da minha vida e talvez comprar algo não muito grande na cidade, começar pequeno. Eu advogava para o dono de um restaurante local que pediu orientação para a venda do mesmo, uma casa fina. Depois de tomar ciência de toda a situação do empreendimento, ele pediu uns dias para o proprietário, foi para o bar do português que tinha ali perto do canal de Itacuruçá, jogou algumas partidas de sinuca sozinho e acabou voltando para fechar negócio. Até então eu não sabia nada de cozinha comercial. O rapaz que vendeu o restaurante tinha o pai, seu Jaime, como cozinheiro, um engenheiro da Marinha, e a mãe fazia as tortas e doces. Na venda, ficou combinado que o seu Jaime ficaria 15 dias. No primeiro dia, uma segunda-feira, me sentei com seu Jaime, abri o cardápio e o cozinheiro foi explicando a produção de cada um dos pratos. Então seu Jaime foi para cozinha e eu para o salão atender os clientes, e de vez em quando eu ia até a cozinha ver com as coisas aconteciam. Tinha contratado um garçom e uma cozinheira, a Dona Marinete, muito experientes, que trabalhavam para o seu Genoval. Ela foi acompanhando o trabalho do seu Jaime para pegar os macetes. Passados os 15 dias acordados, seu Jaime sumiu e nunca mais o vi. Por gostar de cozinha, apesar de até então só cozinhar para família, comprei um livro de receitas e fui adaptando as receitas de seu Jaime, trocando figurinhas com a Dona Marinete. Depois veio mais uma cozinheira, e eles foram criando as receitas. Hoje em dia, os novos pratos são criados em casa por mim e minha filha. Itacuruçá teve uma época dos saveiros. Muitos saveiros e veleiros circulavam pelo canal e pelas ilhas, aí um dia isso acabou. Começou com o Leo Maximino do Hotel Passamar, que tinha também a Passamar Turismo, fábricas de jóias e joalherias. Depois veio a Saveiros Turco. E isso se dava em função de uma carona que o turista estrangeiro pegava para as “Ilhas virgens”, como uma alternativa aos passeios de sempre na cidade do Rio de Janeiro. Os porteiros dos hotéis vendiam os tours, os turistas pegavam um ônibus até Itacuruçá, embarcavam e iam para as ilhas e voltavam à noite para o Rio. Chegou a ter dois mil turistas por dia. Tinham tantos turistas que mesmo com tantos restaurantes e barcos disponíveis não atendia, então o mesmo barqueiro acabava cuidando de três grupos diferentes, sincronizando as trocas de atividades dos grupos do mergulho do restaurante para a praia, para conseguir atender mais gente. Os restaurantes chegaram a atender de 500 a 600 pessoas – tinham dois muito grandes em Águas Lindas, outro na Ilha Martins, outro na Pitangueira e mais um. E eram feitos espetáculos “para turista ver”, com colares de flores, araras e danças, como se fosse o Havaí. Tinha, inclusive, atendimento a transatlânticos. Eram mais de 50 saveiros e geravam muitos empregos para Itacuruçá, tanto na área náutica como na cultura, como os músicos que tocavam nos barcos, e para o comércio da região. Meu pai tinha uma loja que vendia filmes, chapéus, camisetas, e vendia não só para os turistas, mas também para os garotos que compravam e depois revendiam mais caro na areia para os turistas. Ganhando muitas vezes em dólar, muitos conseguiram comprar casa e melhorar a situação familiar. Isso acabou no início dos 1980, com o aumento da violência, que começou a amedrontar os visitantes e a frequência começou a diminuir. Como toda essa estrutura era muito cara, precisava ter rotatividade, e sem isso o esquema acabou se desfazendo por inteiro. Já o porto começou a ter vida em 1995 e acabou reativando a economia da região depois do baque do fim do turismo de saveiros. O porto não interferiu no turismo de pesca. A mudança de público de Mangaratiba se inicia com a linha de trem, ainda no início do século XX. Mais adiante, quando passa a circular o Macaquinho, fazendo mais paradas, a popularização cresce mais um pouco. A primeira linha de ônibus que passa a circular na cidade, antes mesmo da Rio-Santos, vinha da Baixada Fluminense. Isso faz com que o público comece a mudar e os então frequentadores da região de Muriqui e Itacuruçá, oriundos geralmente da Zona Sul do Rio, passaram a se incomodar com os visitantes mais humildes. Com a Rio-Santos, o acesso fica ainda mais facilitado e há uma explosão de visitantes, principalmente excursionistas de um dia, de forma desordenada. E a cidade não cria um planejamento para esses aumentos de fluxos de turistas, não monta estruturas com receptivos, como banheiros ou estacionamentos para carros e ônibus. Em relação às ocupações, a Praia Grande formou uma associação de moradores forte que conseguiu impedir a construção de quiosques na orla, mantendo a paisagem natural; requisitando uma estação de tratamento de esgoto quando foi feito o plano diretor; deixando a passagem aberta, sem cancelas, mas impedindo a circulação de ônibus e vans. Isso controlou o fluxo de pessoas no bairro e hoje ele é aberto, mas ao mesmo tempo uma das áreas mais valorizadas da cidade. No Sahy, também tem tratamento de esgoto, mas foi construída de forma compensatória à instalação dos condomínios. Quando eu era garoto, a faixa de areia do Iate Clube até a capitania na maré baixa era de seis a oito metros. Da capitania até a entrada do Axixá eram uns 12 metros. O mar enchia e ficava uma faixa de areia pequenininha. Aí veio a MBR com a dragagem do canal, que promoveu uma mudança no fluxo da maré; aí veio a pedreira de Muriqui jogando pó de pedra, fazendo aquele aterro, inclusive, não tinha malacacheta na praia e hoje está cheio de malacacheta. Então a maré passou a trazer aquela areia, foi fazendo um aterro e hoje a faixa de areia de Itacuruçá dá 200 metros, ali em frente à estação. A lama dos mangues acabou – e tinha muita lama, agora tem malacacheta. A Ilha da Pompeba sofreu muito o efeito desses canais e foi levada: era uma ponta de areia, e na Ponta da Pompeba tinha a casa da Dona Rosinha, com água potável, cajueiro, coqueiro, pitangueiras. Os jovens iam até lá e acampavam para pescar. Mas essa mudança do curso foi levando, levando, e hoje só existe a Ponta da Pompeba quando a maré está baixa – na maré alta ela se torna até um risco para a navegação. A praia da Ribeira, no centro de Mangaratiba, sumiu; ficou exposto o muro com seu alicerce; ela continua em transformação. Onde foi atingida, logo na implantação da MBR, voltou a ter praia e onde tinha praia, logo no início da Ribeira para quem vem de Mangaratiba, ali já não tem mais acesso nenhum, apenas na altura do Vistamar. A mudança do canal também afetou a Ilha do Jardim. Entre a Jardim e Itacuruçá, indo para Jaguanum, tinha uma praia, então os terrenos eram valorizados, tendo até um hotel e um restaurante. De frente para Itacuruçá só tinha costeira. Com essa mudança, a areia saiu de lá, veio para frente de Itacuruçá, então onde foi vendido barato porque não tinha praia e agora tem, e onde foi caro porque tinha não tem mais. Ibicuí era a Capri Brasileira e Muriqui era a Copacabana Fluminense. As invasões continuam de casas ricas e casas pobres. Construíram, por exemplo, um condomínio no alto de um morro de Muriqui, e quando chove desce uma lama vermelha. Muriqui já se ligou à Itacuruçá, não tem mais nenhum trecho que se ande entre os bairros sem casas. A água da cidade, que sempre foi muito boa, vindas de cachoeiras, já está se tornando uma questão também. A vazão na captadora, por exemplo, está diminuindo. Rios, como em Muriqui e Itacuruçá, estão recebendo esgoto sem tratamento. No chafariz do Centro, construído em 1800, e que era uma parada dos banhistas no pós-praia para tirar a água salgada. Daí construíram o “condomínio” Vistamar no final da década de 1980 e tomaram conta do morro todo e tiraram a água que ia para o chafariz, que hoje recebe um pequeno filete entre as pedras.

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