Sabe por que a Ponta do Tira Chapéu tem esse nome? Porque os pescadores quando dobravam a ponta da baía, a primeira coisa que avistavam era a torre da igreja, daí tiravam o chapéu em reverência. Nasci em 4 de janeiro de 1957 no Rio de Janeiro e me mudei para Mangaratiba aos 16 anos, pois tinha parentes na cidade. Mas resolvi vir por conta própria. Comecei a trabalhar pescando. Só com 40 anos prestei concurso e passei a trabalhar na Prefeitura, mas sempre ligado à pesca. Muita coisa mudou desde que comecei como pescador. Tinha abundância de pescado e hoje não tem mais, o progresso chegou e foi dizimando, acabando com as coisas. Onde tinha manguezal hoje tem resort, marina. Os pescadores, por ignorância, não sabiam da importância dos manguezais e achavam normal essa destruição. Achavam bom que estava acabando com a lama, mas não sabiam que estavam acabando com a vida. Hoje eles têm consciência, mas já é tarde. Comecei a pescar em 1975/76, tinha meu próprio barco. Na época, tinha muito pescado e camarão, hoje é mais difícil. Os pescadores locais sempre tiveram na mão dos atravessadores, nunca tiveram uma cooperativa, um entreposto, e até hoje vivem na mesma situação. Se perguntar onde pode comprar peixe local, tem; mas se quiser comprar direto do pescador, talvez consiga em Muriqui, na praia, direto na canoa, mas pouco. Os pescadores tentaram se mobilizar algumas vezes, mas a força do comércio e da política era forte e eles acabavam sempre perdendo. O problema da pesca é que se passou muitos anos desenvolvendo, mas de forma predatória, industrial, com aparelhos que pegam tudo e matam tudo. Então depois que diminui os estoques de maneira considerável é que se cria leis, mas aí cria para o pobre, que é pescador pequeno, que não tem nada e tá ali pescando há 500 anos. Dizem para o pescador: “Você não pode pescar isso, nem aquilo”, e o pequeno pescador: “Eu? Mas eu que vou pagar?”. Aí criam as leis e botam em cima do artesanal. Eu pescava mais na região da Vila. Mas o pescador de uma certa forma é meio nômade. Porque o peixe é sazonal. Em uma certa época dá um peixe, e se não dá, ele tem que sair para outras áreas para pescar e sustentar a família. Já sai para pescar lula na Ilha das Couves, em São Paulo. Dependendo do barco é um dia de viagem. Eu tinha um barco pequeno, que mal dava para dormir, havia apenas um fogãozinho com uma pequena panela. Quando cheguei em Mangaratiba estavam fazendo o porto. Depois da construção piorou muito para o pescador. O progresso só é bom para alguns segmentos, mas para o pescador, não. A gente fazia arrasto de praia, pegava os peixes que queria e os que sobravam deixavam para trás porque não tinha nem para quem vender. Com o progresso chegou mais gente para comprar, mas veio de maneira muito rápida com a rodovia Rio-Santos. Hoje, a maioria dos pescadores do Centro de Mangaratiba moram nos morros. Não têm um rancho na beira da praia mais, foram proibidos de fazer isso. Antes todos tinham seus ranchinhos. A infraestrutura acabou, e com isso perderam a identidade caiçara deles. A cultura caiçara está escorrendo entre os dedos. Minha família é toda de origem caiçara, da Vila. Meu pai que tinha debandado para o Rio. Os caiçaras são uma mistura de negros, índios e brancos. O problema da cultura caiçara é que, se ele conseguir com o Ibama uma autorização para pegar um tronco na mata para fazer uma canoa caiçara, não tem mais ninguém na cidade que saiba fazer. Tem que ir até Paraty para buscar alguém que saiba. Sem contar que todo mundo que chega na cidade quer comer peixe com banana, que é uma comida caiçara. Já morei na Praia do Saco muitos anos. Hoje moro na Vila. Não houve um cuidado na preservação da cultura e ela se perdeu. O turismo mais atrapalha do que ajuda. Vou contar um caso: eu estava pescando na Boia Nove e tinha um barco de turistas de pesca. Quando fui colocar a rede, um dos turistas tirou uma arma, apontou para mim e mandou: “Tira agora!”. Eu estava trabalhando e o cara se divertindo, mas tirei a rede e fui embora. Então esse tipo de coisa inibiu muito os pescadores, que hoje acabam preferindo levar os outros para passeios de pesca do que pescar, porque ganham mais dinheiro e sofrem menos. Sou da Coordenação da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Marinhas e Costeiras do Brasil. Eles pedem muito essa visão, de quem esteve dentro d’água. Às vezes questiono algumas coisas e alguém se impõe: “Eu sou engenheiro de pesca!” e eu digo: “Você já molhou o pé no mar, cara? Com todo respeito, mas não dá.”. Não entra na minha cabeça que uma pessoa que se diz engenheiro de pesca não conheça uma cocoroca: “Pode ter uma teoria linda, mas praticamente...”. Hoje estamos em uma luta ferrenha e que muita gente na cidade nem sabe que está acontecendo. O governo estadual, com apoio do federal, está colocando na baía de Sepetiba quatro termelétricas flutuantes. Isso vai ser um desastre total! Além da devastação que fizeram nos manguezais, nas matas ciliares e de restinga, vai impactar na fauna de toda a baía. O Centro faz parte da baía de Ilha Grande, mas, a partir de Ibicuí, as praias já fazem parte da baía de Sepetiba - da Guaíba para dentro, da Guaíba para fora é a da Ilha Grande. As obras de portos e estaleiros que foram feitas na região já deterioraram muito a baía e agora vem outro porto com uma capacidade de milhões de toneladas de capacidade. Não foram feitos os estudos ambientais necessários. Com uma canetada o governador liberou a implantação. Muitos perguntam o que eles têm a ver com algo que vai ser lá em Itaguaí. Eu explico que o canal é um só, que o camarão que nasce lá, se deixar de nascer, não vai ter mais cardume de peixes passando aqui para ir lá comer. Mangaratiba tem uma relação com o mar maior do que com a terra. A igreja, por exemplo, é de Nossa Senhora dos Navegantes. Infelizmente, hoje as pessoas não têm mais esse cuidado com o mar, mas é a coisa mais linda e preciosa da cidade. Uma vez tentei convencer um padre a deixar a santa ir em procissão no barco dos pescadores e ele negou, dizendo que tinha que ser em tal lancha. Argumentei que a santa não gosta das lanchas grandes e sim dos barquinhos e que, antigamente, eram os barquinhos que a levavam na procissão. A santa vai em procissão saindo do cais, rodando toda a baía e voltando. Antigamente era muito barco, todos os pescadores eram devotos, eram mais de cem barcos que saíam enfeitados. Era a principal festa da cidade. Hoje, quem leva a santa é a lancha que faz o trajeto para Ilha Grande e meia dúzia de barcos seguem. Foi diminuindo porque faltou o cuidado com a cultura, porque isso também faz parte da cultura. Um garoto novo hoje, pescador, mal sabe a história de Nossa Senhora da Guia. A Capitania dos Portos não incomodava os pescadores porque sabia que eles cuidam do mar como o quintal de casa. Hoje não, tem que registrar e cumprir uma série de burocracias. Se cair uma árvore Bacurubu, que cai normalmente em 50 anos, e o pescador for lá pegar para fazer uma canoa, o Ibama pega. O órgão vai deixar o cupim comer, mas não vai deixar o pescador fazer uma canoa caiçara. As canoas eram feitas direto na mata e levadas para a praia só para o acabamento. Eram feitas assim até os anos 60 ou 70, cheias de técnicas rudimentares. Se perguntarem se sei “tirar uma canoa”, digo que não, mas sei quanto ela mede de boca. Meu avô ensinou que tem que pegar um barbante e botar na proa, levar até a popa, pegar o barbante e dobrar em quatro, que dá o tamanho da boca. Em Mangaratiba não cheguei a ver construtores de canoa caiçara, só em Paraty. Os pescadores locais iam comprar canoa lá. Antigamente vinha cachaça e farinha de Paraty em canoa a remo. O Tancredo, ex-PM que mora na cidade, diz que o braço do avô era enorme, que parecia um touro. Eram seis homens remando uma canoa com produtos para trocar, fazer escambo. As canoas chegavam com peixes e as pessoas compravam na beira da praia com os canoeiros.