Nasci em 1971 na Serra do Piloto. Sempre morei aqui e subia e descia todos os dias para estudar. Demorei a frequentar a escola porque quem morava nos sítios distantes precisava de companhia para ir pra escola. Tive que esperar meu irmão mais novo crescer para irmos juntos. Entrei na 1ª série só com 11 anos. A escola só tinha até a 4ª série. Quem podia, estudava só até aí e voltava para casa. A escola era uma única sala, enorme, com um professor que passava a semana ali e cumpria todas as funções da escola, e ensinava todas as crianças, com as idades misturadas. Tinha vontade de continuar os estudos, então eu e uma amiga dissemos para os nossos pais que os pais uma da outra tinham deixado que elas descessem para a vila para estudar. E foi assim que conquistamos esse direito. Fomos estudar no Colégio Estadual João Paulo II, onde havia aulas a partir da 5ª série, em 1987. Lembro que havia três horários de ônibus, sem passe ou transporte escolar. A gente não podia sentar, porque senão tinha que pagar a passagem. Volta e meia eu subia e descia a pé porque às vezes o ônibus quebrava, ou atolava, ou caia barreira. Nas semanas de provas, por exemplo, não podia faltar. Tínhamos apenas rádio à pilha e ouvíamos 'A Voz do Brasil'. E todos contavam histórias de assombração. A mais contada, até hoje, é de lobisomem. A Fazenda da Lapa marcou minha infância. Era do Doutor Carneiro, que atendia as crianças das famílias locais, pois na região não tinha atendimento médico. Lá também acontecia a missa anual de Nossa Senhora de Fátima, todo mês de maio. Minha avó dizia que próximo ao altar, em uma portinha, estavam presas a alma dos escravos e as crianças precisavam ficar caladas para não acordá-las, senão eles estariam ferrados. Então, as crianças ficavam na capela em silêncio total. Minha família inteira, desde os meus bisavós, sempre estiveram envolvidos com a Folia de Reis. A tradição veio ainda da cidade de São João Marcos. Quando chegava o final do ano, os membros, não só da minha família, como também vizinhos e interessados de outros lugares que já tinham participado dos ensaios ao longo do ano, se reuniam. Os trajes eram produzidos pela minha mãe, tia e membros da família. Eles andavam descalços, não sei se por tradição ou por falta de dinheiro, com uma camisa vermelha e umas boinas douradas, bem chamativas. Na noite de Natal, todos se reuniam na igreja. À meia-noite, era celebrado o nascimento de Jesus. A tradição é que 12 pessoas, representando os 12 apóstolos, seguem na frente, mas são acompanhados de quantas pessoas quiserem participar, tocando instrumentos e cantando, celebrando a vida de Jesus. As pessoas que representavam os três reis vinham de coroa entoando a cantoria. Eram meus tios, Albertino e Miguel, e meu pai, Geraldo. Meu avô levava o estandarte e os demais participantes seguiam atrás. Enquanto o grupo fazia a parte de pregação, tinha a presença do palhaço, que no contexto da folia, tira a atenção da religiosidade e traz o público para a diversão, para dança e outros atrativos que não só a questão religiosa. Então saiam visitando as casas, levando essa mensagem, até 6 de janeiro, quando se fazia o fechamento do encerramento na casa do mestre, convidando todos aqueles que foram visitados e colaboraram para a Folia. O roteiro geralmente era visitar as casas próximas à igreja, depois iam até as proximidades de São João Marcos, Macundu, Rio da Prata. Iam até Mangaratiba, em casas onde eram convidados; depois Muriqui. Próximo à igreja e em São João Marcos, a Folia batia de casa em casa, e quem estivesse disposto recebia; fora dali eram visitadas casas específicas, de admiradores da Folia ou de indicados por esses. Eles passavam dias fora de casa. Meu pai e tios, às vezes, ficavam até depois do ano novo sem voltar para casa. E tudo era feito a pé. Como as pessoas eram da roça, que cuidavam dos sítios, então não tinha problema de faltar ao serviço para se dedicar ao que eles achavam maior: a religiosidade. Além da época de Natal, as apresentações aconteciam também em épocas festivas como no aniversário do padroeiro, cantando e louvando o santo, contando sua vida em versos e rimas, assim como na vida de Jesus, que é cantada em quatro toadas. A luz chegou na década de 1980, a chegada da TV foi uma grande mudança e depois a chegada do asfalto, em 2012. A região passou a ter um fluxo de chegadas muito grande. Até então, todo mundo conhecia todo mundo, mesmo quem era esporádico, as pessoas conheciam como se fosse família. Atualmente, a maior parte das pessoas da Serra do Piloto são veranistas. Os moradores são os agricultores familiares, ou caseiros. Tornei-me educadora e já fui professora e diretora. Hoje, trabalho no Centro de Mangaratiba, na Secretaria de Educação.